Mário Moreno/ abril 12, 2018/ Artigos

O que é um rabino?

Tanakh? Qual a sua origem? Por que alguns grupos, como os sefaradim antigos, não chamam seus líderes de rabinos e dizem que não existem rabinos hoje em dia?

Para responder a estas questões, é preciso voltarmos nos tempos da Torah, e compreendermos como funcionava o seu sistema jurídico-religioso.

O Sistema Jurídico-Religioso

A Torah nos diz, em Devarim (Deuteronômio) 16:18:

“Juízes e oficiais porás em todas as tuas cidades que IHVH teu Elohim te der entre as tuas tribos, para que julguem o povo com juízo de justiça.” (Devarim/Deuteronômio 16:18)

Os juízes (shofetim) eram pessoas experientes e com bastante conhecimento na Torah, e que poderiam auxiliar o povo nas questões levantadas. De fato, além de instruir o povo a estabelecer juízes, a Torah logo em seguida afirma:

“Quando alguma coisa te for difícil demais em juízo, entre sangue e sangue, entre demanda e demanda, entre ferida e ferida, em questões de litígios nas tuas portas, então te levantarás, e subirás ao lugar que escolher IHVH teu Elohim; E virás aos kohanim halewi’im, e ao juiz que houver naqueles dias, e inquirirás, e te anunciarão a sentença do juízo. E farás conforme ao mandado da palavra que te anunciarem no lugar que escolher IHVH; e terás cuidado de fazer conforme a tudo o que te ensinarem. Conforme ao mandado da Torah que te ensinarem, e conforme ao juízo que te disserem, farás; da palavra que te anunciarem te não desviarás, nem para a direita nem para a esquerda.” (Devarim/Deuteronômio 17:8-11)

Mas, como eram escolhidos esses juízes?

A Escolha dos Shofetim (Juízes)

A Torah nos dá algumas informações, a partir dos critérios sugeridos por Yitro (Jetro), sogro de Moshe, e acatado por este último:

“E tu dentre todo o povo procura homens capazes, tementes a Elohim, homens de verdade, que odeiem a avareza; e põe-nos sobre eles por maiorais de mil, maiorais de cem, maiorais de cinquenta, e maiorais de dez; Para que julguem este povo em todo o tempo; e seja que todo o negócio grave tragam a ti, mas todo o negócio pequeno eles o julguem; assim a ti mesmo te aliviarás da carga, e eles a levarão contigo.” (Shemot/Êxodo 18:21-22)

Observa-se que o modelo, instituído por Moshe e mantido pelo povo era gradual. A responsabilidade maior era dada, obviamente, aos mais capazes, e assim se estabeleceu uma espécie de hierarquia do juízo.

Dentro dessa hierarquia, a principal corte era aquela que ficava “no lugar que IHVH escolheu para fazer habitar o Seu Nome”. Isto é, se localizava junto ao Mishkan (Tabernáculo) ou ao Beit HaMiqdash (Templo): A corte dos Setenta Anciãos.

Essa corte recebeu de IHVH a autoridade para conduzir o povo, assim como Moshe fazia anteriormente, como pode ser observado abaixo:

“E disse IHVH a Moshe: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel, que sabes serem anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás perante a tenda da congregação, e ali estejam contigo. Então eu descerei e ali falarei contigo, e tirarei do sopro [הָרוּחַ – haruaH] que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão a carga do povo, para que tu não a leves sozinho.” (Bamidbar/Números 11:16-17)

Essa corte na realidade possuía setenta e uma pessoas, pois Moshe a presidia. Posteriormente, ela passou a ser presidida por Yehoshu’a Ben Nun (Josué filho de Nun), e pelos juízes que se seguiram a ele.

A autoridade da corte fica clara quando o Eterno diz que tomaria do sopro (ruach) que havia em Moshe e agora colocaria sobre essa corte, para que Moshe não precisasse conduzir o povo sozinho.

Posteriormente, quando o grego se tornou a língua franca no mundo, essa assembleia era chamada de synedrion (do grego “assentar-se junto”), termo que foi transposto para o aramaico como sanhedrin (סנהדרין) ou, no português, sinédrio. Apesar do Sanhedrin (ou Sinédrio) ser, portanto, uma palavra relativamente nova, ela se refere a nada mais do que a corte mosaica dos setenta mais um anciãos de Israel!

E, como uma pessoa era escolhida para fazer parte do Sanhedrin? O processo é assim descrito por Rambam (Maimônides)

“Nossos sábios relatam: Para o Grande Sanhedrin, eles enviavam emissários por toda a terra de Israel para buscarem juízes. Aquele que eles achassem ser sábio, temente a Elohim, humilde, dotado de discernimento, maduro, amigável, eles o faziam juiz na sua cidade. E de lá, eles o promoviam à corte que se reunia na entrada do Monte do Templo, e de lá eles o promoviam à corte que se reunia à entrada do Pátio do Templo, e de lá, ao Grande Sanhedrin” (Mishneh Torah – Sefer Shofetim – Hilkot Sanhedrin weha’Unshin haMessurin Lahem 2:8)

Como se pode perceber, o processo era extremamente cuidadoso e meticuloso.

Semikhah: A Ordenação Mosaica

E como era feito o processo de apontamento? Uma das coisas era o que chamamos hoje de “ordenação mosaica” ou semikhah (סמיכה‎). Esse processo se encontra na Torah, quando Moshe apontou a Yehoshu’a (Josué) como seu sucessor:

“E fez Moshe como IHVH lhe ordenara; porque tomou a Yehoshu’a, e apresentou-o perante El’azar, o kohen, e perante toda a congregação; E sobre ele impôs as suas mãos, e lhe deu ordens, como IHVH falara por intermédio de Moshe.” (Bamidbar/Números 27:22-23)

A ordenação por imposição de mãos era feita também para os kohanim (sacerdotes) e lewi’im (levitas):

“Farás, pois, chegar os lewi’im perante IHVH; e os filhos de Israel porão as suas mãos sobre os lewi’im.” (Bamidbar/Números 8:10)

A ordenação mosaica era o mecanismo ordenado por IHVH para que o seu sopro de sabedoria (ruach Hokhma) fosse colocado sobre os líderes do povo, a fim de conduzirem-no em todas as questões:

“E Yehoshu’a Ben Nun, foi cheio do sopro de sabedoria [רוּחַ חָכְמָה – ruach Hokhmah], porquanto Moshe tinha posto sobre ele as suas mãos; assim os filhos de Israel lhe deram ouvidos, e fizeram como IHVH ordenara a Moshe” (Devarim/Deuteronômio 34:9).

Esse processo seria, posteriormente, copiado por diversas outras religiões, mas, evidentemente, sem a autoridade estabelecida pela Torah.

Semelhantemente, a corte dos setenta anciãos continuou o seu processo de ordenação mosaica, ou semikha, conferindo àqueles que serviriam como juízes e mestres em Israel.

A título de curiosidade, a fórmula comum para a semikhah era dizer: “Yoreh? Yoreh! Yadin? Yadin. Yatir? Yatir.” Isto é: “Pode ensinar? Pode ensinar. Pode julgar? Pode julgar. Pode permitir? Pode permitir.”

Tanto o Sanhedrin quanto a ordenação mosaica (semikhah) perduraram durante muitos séculos, até sucumbirem à perseguição do Império Romano, especialmente depois que o último se tornou cristianizado.

Talvez o Sanhedrin mais famoso dos tempos bíblicos – embora em tal época o termo ‘Sanhedrin’, importado do grego, ainda não fosse utilizado – foi o dos tempos de ‘Ezra (Esdras) e os homens da Grande Assembleia. Eles foram os principais responsáveis por reconstruir e restaurar o serviço do Beit HaMiqdash (Templo) após o cativeiro babilônio, reconduzir o povo de Israel à Torah e também por estabelecer uma série de práticas que se tornariam normativas para o povo judeu. Foi sob a liderança de ‘Ezra (Esdras), um kohen (sacerdote) que o cânon do Tanakh foi primeiro estabelecido.

Mesmo após o exílio do povo judeu, promovido pro Roma, o grande Sanhedrin ainda continuou a existir, desta vez reunido na Babilônia, ao invés de Jerusalém. Esse foi, porém, o último suspiro de qualquer forma de Sanhedrin a existir para o povo de Israel.

Sob a perseguição do imperador cristão Teodósio II no século IV, o último presidente do Sanhedrin Gam’liel VI foi morto, e o Sanhedrin permanentemente dissolvido.

A ordenação mosaica, ou semikhah, que até então era uma corrente contínua e ininterrupta, viria também a se perder.

Shofetim, Zeqanim e Rabanim

Até agora, todavia, vimos todo o processo dos chamados zeqanim (anciãos) e shofetim (juízes) de Israel. Mas, que relação há entre isso e o rabinato, e as questões que foram colocadas inicialmente?

É importante o leitor compreender que, com o passar do tempo, várias práticas do Tanakh se mantiveram, porém ganharam outros nomes, seja por uma evolução do próprio hebraico, ou seja por influência das línguas do exílio, ou de línguas adjacentes.

Um desses casos é descrito no próprio Tanakh:

“Antigamente em Israel, indo alguém consultar a Elohim, dizia assim: Vinde, e vamos ao vidente [הָרֹאֶה – haroeh]; porque ao profeta [לַנָּבִיא – lanavi] de hoje, antigamente se chamava vidente.” (Shemuel Alef/ 1 Samuel 9:9)

Ou seja, nos tempos antigos, chamava-se a um profeta (navi) de vidente (roeh) embora sejam, na realidade, a mesma coisa.

Ainda hoje temos diversas palavras que antigamente eram usadas de outra forma. Por exemplo, o leitor não encontrará no Tanakh a palavra talit (טלית), por exemplo, que é tipicamente usada para se referir ao manto onde colocamos tsitsiyot (franjas). Encontrará, porém, a palavra bíblica simlah (שמלה), que se refere à mesma coisa.

Da mesma forma, encontramos na Torah termos como zaken (זקן), ancião (usado no contexto exposto anteriormente), ou shofet (שופט), entre outros.

De onde, portanto, vem o termo rabino?

Na realidade, rabino no português vem de rabi.

E ‘rabi’ é um termo que veio do aramaico, e era utilizado para se referir a pessoas em posições de autoridades. Pode-se observar um pouco desse uso nos livros de Melakhim Bet (II Reis), Yirmiyahu e Daniel. Exemplos:

“Também o capitão-da-guarda [רַב-טַבָּחִים – rav-tabaHim] tomou a Seraías, primeiro sacerdote, e a Sofonias, segundo sacerdote, e aos três guardas do umbral da porta.” (Melakhim Bet/2 Reis 25:18)

“E disse o rei a Ashpenaz, chefe [רַב – rav] dos seus oficiais, que trouxesse alguns dos filhos de Israel, e da linhagem real e dos príncipes.” (Daniel 1:3)

Portanto, os judeus ao verem os babilônios chamarem os seus juízes, oficiais e líderes de ‘rav’ (ou ‘rab’ no aramaico) passaram também a adotar esse costume.

Rab/Rav, Rabi, Raban

Nos tempos antigos, havia uma distinção entre os termos rabi, raban, e rab (ou rav).

A Enciclopédia Judaica afirma:

“O título ‘Rabi’ é usado pelos sábios de Israel, que foram ordenados lá pelo Sanhedrin de acordo com o costume herdado pelos anciãos, e eram denominados de ‘Rabi’, e recebiam autoridade para julgar casos penais; enquanto ‘Rab’ é o título dos sábios babilônios, que receberam sua ordenação em suas escolas. As gerações mais antigas, contudo, que eram bem superiores, não tinham títulos como ‘Raban’, ‘Rabi’ ou ‘Rab’, nem para os sábios babilônios nem palestinos. Isto é evidente pelo fato de Hillel I, que veio da Babilônia, não ter o título ‘Raban’ prefixado ao seu nome. Dos profetas, também, que eram muito eminentes, é simplesmente dito ‘Ageu o profeta’, etc… o título ‘Raban’… foi primeiro usado para Gamaliel o ancião, Raban Simeão seu filho, e Raban Yohanan ben Zakai, todos os quais eram patriarcas ou presidentes do Sanhedrin. O título ‘Rabi’ também, veio a ser usado por aqueles que receberam a imposição de mãos naquele período, por exemplo, Rabi Zadok, Rabi Eliezer ben Yaakov, e outros, e data do tempo dos discípulos de Raban Yohanan ben Zakai adiante. Agora a ordem desses títulos é a seguinte: ‘Rabbi’ é maior do que ‘Rab’; ‘Raban’ novamente, é maior do que ‘Rabi’, enquanto o simples nome é maior do que ‘Raban’. Além dos presidentes do Sanhedrin, ninguém é chamado de ‘Raban’.” (Rabbi, Jewish Encyclopedia)

Ou seja, o uso de tais títulos começa a se popularizar no primeiro século da Era Comum, quando havia forte influência do aramaico em meio ao povo judeu. Muitos judeus do norte de Israel falavam aramaico como sua língua principal.

Observe, portanto, que o termo ‘rabi’ era usado como deferência a shofet (juiz) que recebesse ordenação mosaica (semikhah).

Já o termo ‘raban’, como esclarecido pela Enciclopédia Judaica, era aplicado somente à pessoa que presidisse a Grande Corte, isto é, o Sanhedrin.

Etimologicamente, o aramaico ‘rab’ é cognato do hebraico ‘rav’ (רב), cujo sentido é ‘grande’ ou ‘abundante’. No aramaico, era usado como título de deferência.

O termo português ‘rabino’ deriva justamente do termo hebraico ‘rabi’. Sob esse aspecto, pode-se dizer que não existem mais rabinos hoje em dia, uma vez que a ordenação mosaica se perdeu no século V da Era Comum.

Embora hoje em dia se pratique o conceder semikhah (ordenação), essa não tem nenhuma validade para a halakha judaica, visto que não é a ordenação mosaica. Em sendo assim, o status legal de um rabino atual perante à halakha judaica e de um leigo é exatamente o mesmo.

O Uso Atual do Termo

De fato, até pouco tempo atrás, nas comunidades sefaraditas, ninguém era chamado de ‘rabbi’ ou ‘rabino’. Pessoas que tinham mais conhecimento da Torah, e serviam de líderes locais eram chamados de Hakham (sábio).  Em alguns casos, utilizava-se o terno ‘rav’, visto que este último nunca esteve ligado à ordenação mosaica (semikhah). Nas comunidades mizrahim, a forma mais comum era ‘mori’ (literalmente, meu professor).

No meio ashkenazi, continuou-se a prática de chamar seus líderes de ‘rabi’, mesmo com a ausência da ordenação mosaica (semikhah) e do Sanhedrin. Como os ashkenazim hoje são a esmagadora maioria, essa prática acabou se popularizando, e hoje é adotada no meio sefaradi, mizrahi e até mesmo no meio caraíta. No meio hassídico, é comum também chamarem o líder do movimento de ‘rebe’, que é a forma ídiche de ‘rabi’.

Mas, se alguém deseja ser realmente fiel à tradição, judaica, o correto no hebraico seria chamar alguém de hakham, mori ou mesmo de rav, mas jamais de rabi, até que um novo Sanhedrin se estabeleça e possa recomeçar a ordenação mosaica (semikhah).

Hoje, chama-se de ‘rabino’ principalmente àquelas pessoas que fizeram yeshivah e obtiveram uma formação acadêmica. Ou seja, de ordenação mosaica baseada na Torah, o termo passou a ser basicamente acadêmico. Muitas vezes são também chamados de ‘rabinos’ quando ordenados por outros rabinos, independentemente de sua formação acadêmica.

Em vários casos, quando a pessoa apresenta grande conhecimento da Torah e é reputada por isso, ela é chamada de ‘rabino’ mesmo sem demonstrar semikhah, porque na realidade a semikhah de hoje não tem valor para a halakha judaica. Um dos casos mais famosos foi o do Chafetz Chayim (rabino Yisrael Meir Kagan), que durante muitos anos foi reconhecido como rabino sem apresentar semikha, só o tendo recebido por formalidade quando precisou preencher sua ocupação num formulário de passaporte.

Para que o leitor que veio de outra religião possa compreender a questão, farei aqui uso de uma analogia bastante liberal, que não visa comparar as duas coisas, mas sim apenas ilustrá-las para que aqueles que vêem de um background cristão possam melhor compreender a questão: Guardadas as devidas, colossais e abismais diferenças, do ponto de vista puramente linguístico o uso do termo rabino hoje não é muito diferente do uso do termo pastor.

Geralmente, espera-se que um pastor seja alguém que tenha feito uma faculdade teológica. Porém, há quem diga que o que faz um pastor seja uma ordenação por imposição de mãos (prática copiada do Judaísmo), por parte de outro pastor (mesmo que não tenham uma cadeia sucessória de milênios). Outros dizem que um pastor é uma pessoa escolhida pela comunidade. Outros ainda podem insistir que estes três elementos sejam necessários. Com o termo ‘rabino’, hoje, isso não é muito diferente.

O Ideal e o Possível

Isso significa que não existe valor algum em ser rabino hoje? Longe de nós afirmar tal coisa!!!

No estado atual em que estamos, antes da Gueulah (Redenção), fazemos o possível, mas nem sempre o possível é o ideal.

Um rabino hoje pode não ter ordenação mosaica pela halakha e seu título ser simbólico, mas, via de regra, é uma pessoa com um grande conhecimento da Torah por ter estudado por anos, dentro (obviamente) da linha judaica que segue.

Por causa disso, mesmo não tendo semikhah de fato (apenas uma semikhah simbólica), tais pessoas são reconhecidas pelo povo de Israel como seus representantes para fins de conversão, estabelecimento e liderança de comunidades, inspeção de kashrut (critérios das leis alimentícias), casamentos, entre outras atividades.

Como o leitor pode perceber, a pergunta é complexa, e requer uma boa dose de compreensão da história do povo judeu para ser devidamente entendida.

Encerro manifestando aqui, como muitos, o desejo de ver brevemente o Sanhedrin restaurado (e, com isso, o retorno da semikhah), assim como o Templo, os kohanim (sacerdotes) em seus ofícios, e a dinastia de Dawid conduzindo politicamente o povo.

“E te restituirei os teus juízes, como foram dantes; e os teus conselheiros, como antigamente; e então te chamarão cidade de justiça, cidade fiel” (Yeshayahu/Isaías 1:26).

Tradução: Mário Moreno.