Mário Moreno/ setembro 5, 2017/ Artigos

Anochi

Anochi: Inscrição da Alma

A mais famosa declaração jamais feita em toda a história – Os Dez Mandamentos – começa com uma palavra incomum de quatro letras: Anochi. A palavra significa “Eu”, referindo-se a D’us – Eu o Eterno teu D’us te tirei do Egito…” Porém “ani” é o pronome hebraico comum para “Eu”.

O Talmud explica (Shabat 105 a) que Anochi é um acrônimo para Ana Nafshi Ketovit. Numa tradução simples: Eu mesmo escrevi [essas palavras e] as dei [a você]. Porém sob uma inspeção mais cuidadosa e tradução real é muito mais intrigante: “Eu escrevi Minha própria Alma e a dei a você.” Ou mais poeticamente: “Minha alma está inscrita nessas palavras que Eu dei a você.”
Como palavra inicial dos Dez Mandamentos, Anochi claramente deve encerrar um profundo significado, que dá o tom e capta a essência de todos os mandamentos e de toda a Torah. Na verdade, o Rebe Yossef Yitschak enfatiza que a Torah inteira está contida nos Dez Mandamentos; os Dez Mandamentos estão todos contidos nos primeiros dois mandamentos, que por sua vez estão contidos no primeiro mandamento, e o primeiro mandamento está refletido em microcosmo na primeira palavra, Anochi. E como toda a existência se origina e está incluída na Torah, que é o projeto com o qual o Arquiteto cósmico construiu o universo, podemos concluir que Anochi ilumina para nós um aspecto fundamental de toda a nossa realidade.

Anochi capta a essência e propósito de toda a existência: para inscrever e revelar a alma em toda palavra nossa e em toda nossa experiência.

Isso não é pouca coisa. Vivemos num universo altamente fragmentado e compartimentalizado. A maior dicotomia é entre corpo e alma, matéria e espírito. Porém, por baixo da superfície fissurada uma unidade subjacente conecta todas as peças. A princípio parecemos todos separados uns dos outros – cada um de nós com nossa própria gama de experiências, diferentes exposições e trajetórias de vida. Mas quando começamos a nos comunicar uns com os outros, descobrimos traços em comum, reações compartilhadas, interesses mútuos, que transcendem nossas diferenças. Por mais diversos que possamos ser, aprendemos a celebrar marcos semelhantes, sorrir de experiências similares, derramar as mesmas lágrimas, sofrer as mesmas dores.

A compartimentalização humana é aguda e poderosamente expressa nas palavras de Bertrand Russel. Quando lhe indagaram como ele, um professor de ética, podia comportar-se de maneira não-ética, Russel disse; “Sou também um professor de matemática e não sou um triângulo.”

Os acadêmicos com frequência se orgulham de sua isenção: “Posso ser completamente conhecedor de um determinado tópico e isso não afetar meu comportamento.” Contraste essa atitude com as palavras de Maimônides, que um verdadeiro erudito é reconhecido pelas suas ações; como ele fala, caminha, dorme e trabalha. Um fluxo contínuo entre saber e comportamento.

Russel estava seguindo nada menos que as leis naturais de todos os seres – “o caminho de toda carne” – que é impulsionado e justifica a compartimentalização fundamental entre ideais e ações. Aquilo que você ensina não é necessariamente aquilo que faz, e vice-versa. Sua escrita não necessariamente reflete sua alma. Maimônides, por outro lado, estava seguindo a deixa de Anochi – integração contínua entre alma e palavras.

A abertura dos Dez Mandamentos, Anochi, define a essência do propósito da vida, de todas as nossas interações e todas as nossas palavras – para manifestar a alma unificadora em nosso universo fragmentado.

Se D’us não tivesse inscrito Sua alma nas palavras, nosso relacionamento com o Divino continuaria afastado. O mesmo se aplica ao nível humano. Se todas as nossas interações fossem comerciais e mundanas, jamais teríamos uma conexão, uma verdadeira conexão, uns com os outros.

Ao inscrever Seu espírito em Suas palavras, toda palavra, agora imbuída com profunda espiritualidade, evocou uma tranquilidade unificadora em toda a existência. Como o Midrash lindamente descreve o estado do universo quando D’us falou todas essas palavras (Shemot 20:1): Nenhum pássaro piou, nenhuma ave voou, nenhum boi mugiu, nenhum dos anjos mexeu uma asa, o serafim não disse “Sagrado, Sagrado”, o mar não rugiu, as criaturas não falaram, o mundo inteiro ficou num silêncio profundo e a voz proclamou: “Eu sou D’us, o teu D’us.”

[Cá entre nós, Dez Mandamentos não é uma tradução acurada do original hebraico “Aseres há’Dibrot”, que na verdade significa Dez Palavras, ou Dez Declarações. Palavras parecem tão mais reconfortantes que mandamentos…]

Podemos também e devemos aprender isto a partir da comunicação: para inscrever nossas almas em nossas palavras, para que cada pronunciamento nosso se torne um canal transparente para a expressão de nossa alma.

A verdadeira comunicação não é meramente o processo de transmitir mensagens, ideias e sentimentos. Trata-se de um relacionamento – uma conexão e vínculo entre as partes se comunicando uma com a outra.

Um escritor, um orador, um compositor inscreve – grava – sua alma em sua obra. Isso lhe permite atingir dentro da alma do leitor ou do ouvinte. Palavras vindas do coração entram no coração. Uma obra que careça de sinceridade e alma não causará impacto.

Pense dessa maneira: Durante um dia comum, quantas das suas conversas são sobre assuntos superficiais, faladas com palavras vãs? Quantas de suas interações e transações são experiências transitórias? Quantos de nossos desejos e anseios são fugazes e de pouca duração?

Nossa missão – aceitar a pista de D’us imbuindo Sua alma dentro das palavras Divinas que Ele dividiu conosco – é atingir mais profundamente dentro de nós mesmos, revelar a alma em cada uma de nossas experiências, até as casuais e triviais.

Imagine como as pessoas reagiriam a você se ouvissem o seu espírito cantando em vez de o seu corpo gemendo; sua alma acenando em vez de seu porta-voz ameaçando; suas palavras gentis em vez de exigências agressivas.

Fale com seu coração e alma, e você também pode trazer paz a um mundo turbulento e caótico.

Adaptação: Mário Moreno.