A vingança final
A vingança final
A vingança de que não há vingança pior do que a alma será cortada e não merecerá a vida [no mundo vindouro], como se afirma (em relação a quem comete idolatria), “cortada, essa alma deve ser eliminada, seu pecado está dentro dele” (Nm 15:31). Este perecimento é o que os Profetas chamam por analogia de “poço da destruição“, “devastação” (avadon), “fornalha“, “sanguessuga” (alukah). Os [Sábios] referem-se a ele usando todos os termos de destruição e devastação, uma vez que é a destruição após a qual nunca há aumento e uma perda que nunca é recuperada.
O Rambam continua discutindo o destino final do homem. Até agora, ele discutiu o mundo vindouro – a recompensa final que o digno merecerá no fim dos dias. O Rambam agora se volta para a alternativa – a destruição que atingirá os pecadores.
Qual é essa punição? É realmente o pior destino imaginável – destruição da alma (sua permanente separação de D-us). Essa pessoa não existirá mais. Ele simplesmente não será. A Torah se refere a ele como karait (eu uso este termo abaixo) – geralmente traduzido como excisão, “ser cortada”. A alma será cortada de sua fonte de existência e perecerá.
Quando pensamos nisso, este é o pior horror imaginável. Isso não é punição, sofrendo os tormentos do Inferno. É a inexistência, a anulação completa de uma alma. Em nossas vidas, temos medo da morte – embora saibamos em nossos corações que nossa alma e nossa psique – nosso verdadeiro eu – ainda existirá depois. A excisão, entretanto, é a verdadeira morte. Nós não seremos. Suponho que depois que tudo acabar, não fará mais diferença. Mas para a alma, este é o destino mais assustador que se pode compreender.
Da mesma forma, sempre foi um pouco curioso para mim como as pessoas podem questionar se nossas almas são imortais – se existe vida após a morte. Acho que todos nós – até os questionadores – sabemos instintivamente que uma parte de nós é eterna. Somos mais do que um bando de neurônios armazenando e transmitindo informações. Temos uma alma que existe separada de nosso eu físico. Na verdade, sentimos que somos “reais” por causa daquela pequena parte de nós que é imortal – aquele pequeno pedaço de D-us dentro de nós que não depende de coisas físicas. E, inversamente, o pensamento de que isso pode ser tirado de nós se não formos dignos é o destino mais terrível que se possa imaginar.
Os comentaristas do Rambam fazem uma observação importante. A literatura judaica frequentemente faz referência a um Inferno mais convencional – um lugar de fogo e retribuição divina em que os pecadores são punidos. O Rambam, entretanto, parece descrever a punição destinada aos ímpios simplesmente como uma falta de vida eterna. Onde está o espaço para o esquema “normal” do Inferno no Rambam?
A resposta é o que discutimos algumas aulas atrás (8:1 parte 3). Existem duas fases em nosso julgamento – uma fase pessoal que cada um de nós sofre depois de morrer, e o julgamento universal imposto a toda a humanidade no Fim dos Dias. Depois que cada um de nós morrer, faremos o julgamento de nossas ações. E uma vez que “não há homem justo no mundo que faça o bem e nunca peque” (Kohelet 7:20), virtualmente os pecadores sofrerão alguma punição no Inferno. Em seguida virá a punição final, a definitiva separação de D-us. Para os justos ocorrerá que entraremos no que descrevemos como o “Mundo das Almas” – não a recompensa final do Mundo Vindouro, mas o lugar de descanso abençoado para todas as almas até a Ressurreição.
No final da existência do mundo físico, após 6.000 anos, um julgamento separado será feito sobre o homem – e esse será o último. Os justos entrarão no mundo vindouro – um estado eterno e abençoado de proximidade com D’us, enquanto os ímpios serão totalmente destruídos (lago de fogo). Isso é o que o Rambam está discutindo aqui. Ele certamente concorda com a existência do Inferno, que é o destino do homem após sua morte – como ele escreveu claramente em 3:5. Mas ele agora está discutindo o estágio final do mundo.
(Deve-se notar também que mesmo os completamente ímpios que serão destruídos no Fim dos Dias também sofrerão o Inferno convencional por cada um de seus pecados. A justiça de D’us é absoluta. Nenhum ato, não importa quão grande ou pequeno, é sempre esquecido.)
Há outra distinção importante que precisamos fazer. A Torah prescreve a punição de excisão para uma vasta gama de pecados – muitos dos relacionamentos incestuosos, aquele que profanou o sábado, aquele que come certas gorduras proibidas, aquele que entra no Templo em um estado impuro, etc. A lista é considerável. É claramente reservado para pecados bastante graves, mas ninguém pensaria que todos na lista são tão maus que sua alma merece o inferno.
Além disso, o Talmud define a excisão em mais de um lugar. Em Mo’ed Kattan (28a), define-o como morrer entre as idades de 50 e 60 – ou seja, jovem. Em Yevamos (55a), define-o como tendo (ou morrendo) sem filhos. O comentarista medieval Rashi segue ambas as explicações (ver o comentário de Gênesis 17:14). Desnecessário dizer que uma morte prematura é certamente um castigo divino, mas dificilmente é uma destruição eterna.
Com base nisso, o Ramban (Nachmanides, grande talmudista e filósofo da Espanha do século 13 – observe o ‘n’ no final de sua sigla), em seu comentário à Torah (Levítico 18:29), distingue entre três níveis de karait. Vou simplificar sua discussão fazendo uma distinção muito básica, como abaixo.
Existem basicamente dois tipos de carait, “ser cortado” – um é deste mundo e o outro é do próximo. O pecador comum, que (consciente e propositalmente) profanou o sábado, está sujeito à extinção deste mundo. Sua vida será abreviada e / ou sua linha genealógica será cortada pela morte de seus filhos (ver Ibn Ezra a Gênesis 17:14). Uma vez que sua punição seja administrada, depois, ele irá para o inferno e não entrará no Mundo Vindouro, mas sua alma ainda viverá sendo punida eternamente. Em relação a tais pecados, a Torah geralmente escreve, “o homem (‘ish’) será cortado.” O homem físico será cortado e sua alma permanecerá sendo castigada.
Aquele, no entanto, que se rebela contra D’us da maneira mais séria – ele rejeita D’us por idolatria, ou amaldiçoa D’us (veja o texto de Números 15:30-31), terá não apenas seu corpo cortado, mas sua alma também. A respeito de tais pecados, a Torah geralmente escreve: “A alma será cortada.” A própria alma de tal pecador será extirpada da vida e perecerá eternamente demonstra que existirão graus de punição.
Duvido que muitos de meus leitores se enquadrem nesta categoria, mas acho que é apropriado acrescentar que todas essas punições, mesmo para os pecados mais hediondos, podem ser evitadas por meio do arrependimento. Vários capítulos atrás (cap. 3), o Rambam dedicou muito espaço para discutir categorias de pecadores tão perversos que não recebem nenhuma parte na vida futura – pessoas que negam D’us, negam a divindade da Torah, ignoram a situação de seus semelhantes Judeus, etc. A lista era bastante extensa e cobria virtualmente todos os tipos de pessoas mais ímpias – aqueles que claramente não querem nada de D’us e espiritualidade (e que consequentemente têm seus desejos atendidos).
Mas então o Rambam acrescentou a seguinte conclusão (3:14):
“Quando é que todas essas [pessoas] não têm participação no Mundo vindouro? Quando eles morrem sem arrependimento (teshuva). Mas se [tal pessoa] se arrepender de sua maldade e morrer como um arrependido, ela está entre aqueles que receberão [uma parte no] Mundo vindouro. Pois você não tem nada que impeça a teshuvá. Mesmo que alguém negue a D’us todos os seus dias e no final se arrependa, ele tem uma parte, como está declarado, “Paz (shalom)! Paz! ao distante e ao próximo, diz D’us, e eu o curarei” (Isaías 57:19).
O Judaísmo às vezes pode parecer exigente. Temos um D’us que insiste em que O sirvamos e nos pune quando não o fazemos. Mas, na análise final, D’us está nisso apenas para uma coisa – para recompensar a humanidade, para nos dar a oportunidade de ganhar um relacionamento com Ele e colher a recompensa final. E Ele nos dá todas as oportunidades possíveis de retornar a Ele, até nossos últimos momentos na terra. Pois D’us virtualmente nunca desiste de nós. Nós também não devemos desistir d´Ele!
Tradução e adaptação: Mário Moreno.