A culinária judaica através do tempos

Mário Moreno/ fevereiro 14, 2018/ Artigos

A culinária judaica através dos tempos

A forma pela qual os povos preparam os alimentos conta um pouco da sua história. A maneira de

cozinhar dos judeus narra a trajetória de um povo que, apesar de errante, mantém-se unido por suas tradições.

Vivendo há dois mil anos na diáspora, forçado a mudar constantemente de país, o povo judeu acabou criando e fortalecendo suas raízes também através de sua culinária, transmitida de geração em geração. Assim, a comida acabou sendo o símbolo da continuidade, o laço com o passado ainda que influenciada pela cultura dos países nos quais as comunidades judaicas se estabeleceram ao longo dos séculos.

Segundo a tradição, quando Moshe desceu do Monte Sinai, determinou uma série de leis alimentares que foram em grande parte responsáveis pelo tipo de comida e de sabor transmitidos através dos milênios. De acordo com a tradição judaica, as refeições ocupam lugar de destaque nas festas e comemorações religiosas. A cada festividade correspondem pratos simbólicos, com um papel definido no ritual. Por exemplo, a chalá no Shabat; a maçã e o mel em Rosh Hashaná; a matzá em Pessach.

A refeição que é associada a um ato religioso se reveste de espiritualidade e é conhecida como seudat mitzvá. Entre os exemplos de seudat mitzvá estão a refeição servida após a cerimônia de casamento, de brit milá e do pidion haben. Da mesma forma, quando o estudo de um grande trecho do Talmud é concluído, realiza-se uma celebração e uma refeição festiva para os alunos. Certos dias do calendário judaico também requerem refeição especial.

O nascimento

Um dos acontecimentos mais importantes no cotidiano judaico é o nascimento de uma criança, principalmente se for menino. É a ocasião para se preparar pratos especiais, mais conhecidos em regiões como a Catalunha (Espanha), em que a refeição antes da apresentação do recém-nascido incluía galinha, arroz e mel. Nos bairros judaicos do Oriente Médio, comiam-se as chamadas “fatias de nascimento”, ou Torrijas, com as quais se presenteavam as mães que acabavam de dar à luz. Este costume prevalecia em Toledo (Espanha) até há pouco tempo. Lá, a cerimônia chamada “hadas” ou fadas, no sentido de destino feita em honra dos recém-nascidos, acontecia ao entardecer do sétimo dia após o nascimento. No caso de ser um menino, este era o primeiro passo para a circuncisão. Para as meninas, consistia no “Simchat Bat” do Israel moderno, em que a menininha recebe seu nome hebraico e as “fadas”, isto é, os bons votos de sua comunidade para que tenha um destino feliz. Além de bolos, também eram servidos vários tipos de doces e confeitos de amêndoas.

O banquete nupcial

A almosana, costume comum entre os judeus de Salonica, começava no sábado anterior à semana das núpcias e contava basicamente com a presença de mulheres. Na ocasião serviam-se doces e bebidas. O banquete nupcial se realizava depois do anoitecer, em companhia dos familiares e amigos mais próximos. Às vezes, também, uma pequena recepção era oferecida em que eram servidas guloseimas bem açucaradas e tarales roscas grandes feita à base de farinha, óleo e açúcar. Depois de terem aberto a recepção e recebido a bênção do pai, os recém-casados se retiravam. Ainda nos tempos atuais é costume a mãe da noiva colocar pequenos doces e bombons sob os travesseiros do casal, para que os noivos adocem a boca e a vida que iniciam.

Depois da cerimônia de casamento, começava a semana das festas nupciais. O marido agradecia os convidados, oferecendo roscas e tarales preparados por sua mãe. Em algumas comunidades, encerrava-se a semana de comemorações com o Dia do Peixe. Começava com a ida do jovem esposo, bem cedo, ao mercado para comprar os peixes. Estes eram colocados em uma bandeja no chão e a noiva deveria passar três vezes sobre a bandeja, enquanto os presentes faziam votos para ela ser tão fértil quanto os peixes.

A esposa tinha o dever de não romper os laços afetivos com a sua própria família. Por isso, seguindo um ritual antigo, sua mãe lhe colocava um bombom ou um torrão de açúcar na boca antes que atravessasse o umbral da casa paterna, em direção à nova vida.

Luto

O luto rigoroso dos enlutados também se estende à comida. A primeira refeição depois do enterro é composta por um ovo cozido e pão. Durante a semana de luto, a Shivá ou Avel, as refeições são feitas no chão ou sobre banquinhos, pois a mesa de refeições da casa tem o caráter de alegria e abundância.

Os alimentos

As leis da cashrut determinam o que é permitido e o que é proibido comer (taref). A preparação dos alimentos também segue leis rígidas, especialmente quanto à proibição de se misturar produtos de carne e de leite, ressaltando o fato de que não se deve consumir o sangue dos animais.

Dentre os legumes, as lentilhas tiveram um papel decisivo na história do povo judeu, pois Esaú vendeu seu direito de primogenitura para o irmão Jacó por um prato de lentilhas. O óleo também sempre esteve presente na história judaica. Segundo a Bíblia, o rei Salomão enviava óleo a Hirão I, rei de Tiro, em troca de materiais e de artesãos para a construção do Templo. O óleo de oliva também é mencionado em vários trechos da Bíblia.

As frutas sempre tiveram destaque em várias comemorações. A tâmara, a maçã, a romã, entre outros, são elementos importantes na mesa de Rosh Hashaná. A romã, devido a suas inúmeras sementes, é o símbolo da fertilidade e da abundância. A uva merece menção especial, pois dela se extrai o vinho, presente em todas as rezas. Consumiam-se uvas frescas, secas ou em forma de bebida. As uvas secas ou passas servem como ingrediente para bolos e doces desde o segundo milênio.

A tradição judaica atribui a Noé a primeira experiência com os efeitos do vinho.

As passagens da Torá nas quais Canaã é chamada de terra “onde corre leite e mel” indicam de forma inequívoca que o leite era um alimento muito apreciado. Quanto ao mel, fazia parte dos produtos que a região de Tiro importava de Judá e Israel.

Festas religiosas

A mesa tem um lugar fundamental nas festas religiosas. Os preparativos para o Shabat são basicamente referentes à comida. O prato principal do Shabat é o hamin, também conhecido, entre os judeus marroquinos, com o nome de adafina ou “coisa quente”. Este prato, que tem como ingredientes básicos ovos cozidos, grão de bico e carne, exala um aroma especial já desde a véspera do dia sagrado, quando é lentamente preparado, já que no Shabat não se cozinha. Os judeus ashquenazim têm um prato semelhante para o Shabat. Trata-se do tchulent, um grande cozido de feijão branco, galinha e carne de peito, entre outros ingredientes.

Na véspera de Rosh Hashaná é costume preceder a refeição da família com alimentos simbolicamente selecionados, devido à conotação sugerida pelo nome da festa. Rosh Hashaná, começo do ano, requer que sejam feitas bênçãos sobre legumes e frutas: maçã, romã, tâmara, feijão, alho poró, acelga e também sobre a cabeça do peixe ou do carneiro.

Já o Yom Kipur, Dia do Jejum, determina a proibição de ingerir qualquer alimento ou bebida. Mas a festa começa e termina com uma refeição festiva. A que precede o jejum é geralmente leve, à base de frango, sem bebida alcoólica ou temperos fortes, como pimenta e canela, que provocam sede. A refeição que antecede o jejum de Yom Kipur é considerada tão essencial quanto o próprio jejum do dia seguinte. O jantar que o quebra geralmente é suculento. Come-se de tudo, salgados e doces. Antigamente a refeição era à base de carne, sopas e aves. Hoje a tendência entre algumas comunidades é preparar uma refeição predominantemente à base de leite, mais leve.

Sucot também conhecida como “Pessach das Cabanas” ou “Festa dos Tabernáculos” começa cinco dias depois de Yom Kipur. Durante uma semana, as refeições devem ser feitas dentro da cabana ou sucá. Antigamente as ruas e bairros judeus eram apropriados para a construção das cabanas. Quando isso não é possível, a cabana é erguida no pátio interno da casa. Nas mesas, colocam-se pratos de salgados e doces durante sete dias seguidos.

Purim ou Festa da rainha Esther é uma das expressões mais autênticas do povo judeu. A leitura da Meguilá (o Pergaminho de Esther) é feita na véspera, após o termino do jejum chamado Jejum de Esther e também no dia seguinte, pela manhã. É costume beber muito vinho, jogar jogos de azar e usar fantasias coloridas. Em Purim é costume dar e receber mishloach manot doces e outras guloseimas.

A festa de Pessach dura oito dias e necessita da participação maior das mulheres, pois o preparo dos alimentos pede cuidados especiais. A matzá, ou pão não fermentado, é o alimento característico da comemoração e os judeus, mesmo as crianças, abstêm-se de comer pão e outros alimentos fermentados durante toda a festividade.

Diáspora sefaradita

Ao contrário dos pratos ashquenazitas, relativamente semelhantes entre as várias comunidades, a cozinha sefaradita é extremamente variada e regional. Os judeus adotaram o tipo de comida dos paí- ses nos quais viviam, mantendo sempre um toque pessoal e um sabor singular que os diferenciava dos demais. A cozinha sefaradita difere de um país para outro e, às vezes, até de uma cidade para outra. Há, no entanto, uma certa unidade na preparação dos pratos encontrados em várias regiões do mundo sefaradita.

A comida é sempre aromática e colorida. Usa-se todo tipo de condimentos ou produtos que dão um gosto especial, como a famosa água de rosas. A boa mesa sempre fez parte da tradição dos judeus desta origem. Grande número de pratos provém de Bagdá (Iraque), entre os quais as carnes cozidas com frutas, os caldos engrossados com pasta de amêndoa, o xarope de romã e tamarindo e as misturas agridoces. Os outros pratos provêm da Espanha e alguns originaram-se em Portugal, no seio dos núcleos marranos.

Bibliografia:
Roden, Claudia, The Book of Jewish Food
História da Alimentação, Jean Louis Flandrin e Massimo Montanari

Artigo extraído da Internet.

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