Livro da Vida
Nosso destino não está escrito em nossos genes. Nossas decisões são mais que impulsos eletroquímicos no cérebro. Podemos ser pó da terra, mas dentro de nós está o sopro de D’us.
Existem momentos em que o significado de uma antiga metáfora toma uma nova dimensão. Isso é o que aconteceu este ano. Durante séculos, talvez milênios, nesta época entre Rosh Hashaná e Iom Kipur nossos ancestrais falaram sobre o “livro da vida” e oraram para serem inscritos nele.
Não é por acaso que quando os judeus falavam a respeito da vida pensavam sobre um livro. Outras religiões encontram santidade em outras coisas — pessoas, locais, ícones, objetos. Mas a santidade judaica existe, acima de tudo, na linguagem. Com palavras, D’us criou o mundo. Através de palavras, Ele revelou-Se no Sinai. Através das palavras, D’us e o povo judeu conectam-se um ao outro no grande pacto de amor e redenção. Quando D’us compôs a Torah, dizem os rabinos, Ele escreveu-a com letras de fogo negro sobre fogo branco. Para nós letras, palavras, frases, livros foram o meio no qual o mistério da vida foi codificado. Sabemos agora que isso foi mais que uma intuição espiritual. É um fato científico.
A decodificação do genoma humano é um dos notáveis avanços da ciência. Quarenta e sete anos depois que Francis Crick e James Watson descobriram a dupla hélice do DNA, o roteiro completo do genoma humano foi transcrito. Ocorre que este é um roteiro de enorme comprimento e complexidade, escrito nas quatro letras que formam o código genético. O ex-Presidente Clinton chamou-o de linguagem da criação. Os cientistas simplesmente declaram: Estamos aprendendo, dizem eles, a ler o livro da vida.
As conexões entre o genoma humano e Rosh Hashaná vão mais além — e isso não é surpresa, porque ambos tratam dos fundamentos da própria vida. O primeiro está ao nível da criação. Dizemos em nossas preces: “hayom haras olam“, “hoje nasceu o universo.” Rosh Hashaná é o aniversário da criação. Alguns sábios acreditavam que este foi o dia no qual D’us fez o homem. Mais do que qualquer geração anterior, sabemos agora a total extensão e complexidade destes mundos macro e microscópicos.
Contemplando o espaço exterior, por meio de instrumentos como o telescópio espacial Hubble, descobrimos um universo de um bilhão de galáxias, cada qual com um bilhão de estrelas. Olhando para o “pequeno universo” (olam catan), ou seja, nós, descobrimos que o corpo humano contém um trilhão de células. Cada célula contém um núcleo, e cada núcleo dois conjuntos do genoma humano. Cada genoma consiste de aproximadamente 3.1 bilhões de letras, informação suficiente para preencher uma biblioteca de cinco mil livros. A mente oscila perante tal complexidade microscópica. Dentro de uma única célula de tecido vivo a ciência mapeou um mundo novo, até agora desconhecido.
Da astrofísica até a microbiologia, os cientistas de hoje cada vez mais expressam um sentimento de reverência pela perfeita sintonia do universo e a pura improbabilidade de que a vida, com sua complexidade auto-organizadora, tenha emergido por mero acaso. O físico de Harvard, Freeman Dyson, escreve: “Quanto mais eu examino o universo e os detalhes de sua arquitetura, mais evidências encontro de que o universo, de alguma forma, deve ter sabido que estávamos chegando.” Isso é um eco daquilo que Maimônides escreveu há mais de oito séculos (Hilkhot Yesodei haTorah 2:2) quando afirmou que o caminho para o amor e temor a D’us é contemplar a maravilha e a sabedoria da criação.
Há uma outra conexão entre a ciência e os Dias de Reverência, mas desta vez menos direta. No decorrer do Projeto Genoma, foram feitas alegações de que estamos no limiar de descobrir a base genética do comportamento humano. Os médicos há muito sabem que determinadas doenças são hereditárias. Maimônides, por exemplo, sabia que a asma é transmitida dentro das famílias. Assim também, debate-se atualmente, são os traços da personalidade como agressividade, depressão, até a propensão ao crime. A partir daí é um curto passo, porém enganoso, para o determinismo genético — à ideia de que não podemos evitar aquilo que somos. Nosso destino está escrito em nossos genes.
O judaísmo rejeita esta ideia, ainda mais enfaticamente em Rosh Hashaná e Yom Kipur. Existe um componente genético no comportamento. Maimônides (Hilkhot Deot 1:2) descreve as várias influências sobre o caráter. Algumas são genéticas (lefi teva gufo). Outras têm a ver com a criação, ambiente e cultura. É isso que queremos dizer em Yom Kipur, que somos “ke-chomer beyad hayotser“, “como argila nas mãos do ceramista”.
Somos moldados por influências além de nosso controle. Mas — e isso é um ‘mas’ fundamental — jamais perdemos nossa liberdade. Somos aquilo que escolhemos ser. Às vezes, fazer a coisa certa é uma grande luta. A inclinação para agir de forma diferente pode ser quase avassaladora, mas nunca de forma completa. Nenhuma religião tem se afirmado mais sistematicamente sobre a liberdade e responsabilidade humanas. É isso que nos faz “à imagem de D’us”. O escritor Prêmio Nobel Isaac Bashevis Singer declarou isso muito bem e espirituosamente: “Temos de acreditar no livre arbítrio. Não temos escolha!”
Nosso encontro mais profundo com a liberdade está na experiência de teshuvá. O completo arrependimento, diz Maimônides, é quando nos encontramos exatamente na mesma situação de quando cometemos um pecado, mas dessa vez não o repetimos. Todos os fatores são os mesmos exceto um — nossa decisão. No âmago da teshuvá está a idéia de que as circunstâncias não determinam aquilo que fazemos. Podemos agir de forma diferente da próxima vez. Podemos mudar. E se podemos mudar, não estamos determinados por nossa dotação genética ou por qualquer outro fator que não seja a nossa vontade.
A liberdade, porém, nunca é fácil. Precisamos de ajuda para ser aquilo que podemos nos tornar. Precisamos de um código moral para nos lembrar o que é certo e o que é errado. Precisamos do apoio da família e da comunidade. Precisamos de rituais para praticarmos a coreografia da virtude. Precisamos de histórias de vidas exemplares através das quais ampliemos nossas aspirações. Precisamos de um senso de distância entre nós e a cultura à nossa volta, para que não sejamos levados pela maré.