O judeu e o tempo

Mário Moreno/ fevereiro 1, 2018/ Artigos

O Judeu e o Tempo

A vida consiste em luz e trevas: “E houve noite e houve manhã.”

As ideias mais importantes da religião judaica, embora sejam intangíveis, tornam-se acessíveis por estarem incrustadas no tempo. São celebradas em dias específicos num ciclo anual de festejos e jejum, ancoradas no espaço – por substâncias palpáveis como uma cabana, matsá ou velas.

Tudo aquilo que pode ser feito a qualquer hora por qualquer pessoa será feito em pouco tempo por ninguém. O Judaísmo preserva os exaltados princípios e os eventos cataclísmicos de sua história por meio de um sistema de práticas estruturado, bem definido e especificamente programado: o calendário judaico.

Os Anos

Os povos antigos começavam uma nova contagem de anos no calendário com o reinado de cada novo monarca. Quando o Cristianismo começou a dominar o mundo ocidental, começou a datar a história a partir do nascimento de seu próprio “rei”, e depois segundo o calendário gregoriano. A partir de então, a história foi dividida em AC e DC, antes do advento do nascimento do rei e no “ano do senhor”. O Judaísmo não podia consentir em dividir a história por essas linhas; não divide a história universal nem sequer para fazer um ponto de apoio no nascimento de Avraham ou Moshê. Portanto, o calendário religioso judaico jamais foi orientado dessa maneira.

Durante muitos séculos, os judeus contaram os anos a partir de um evento – o início de sua existência como um povo – o Êxodo do Egito. Após a destruição do Templo em 70 EC, aquele evento cataclísmico durante algum tempo substituiu o uso do Êxodo como data inaugural.

Porém, o senso do judeu a esse respeito, que viria a se expressar somente depois de séculos, era que nem mesmo um evento dessa magnitude era suficientemente importante para traçar uma linha através do tempo e para recomeçar a contar a história do mundo.

Somente uma ocorrência poderia servir como um início para a história: o início da história. O Judaísmo determinou a contagem dos anos do calendário numa escala universal – a partir da Criação do universo. Mas qual é a idade exata do universo?

Até os cientistas, com sua instrumentação exata e avançada, estão certos somente de uma resposta: que sobre isso não pode haver exatidão. O único método para os Sábios foi contar os anos segundo a narrativa literal da Criação na própria Torá.

Portanto, a data hebraica de quase 6 mil anos (estamos em 5773) implica em quase seis mil anos da soberania Divina sobre o mundo, segundo a contagem da Torá, e este é seu significado eterno.

Porém, isso apresentava um problema: os judeus eram uma minoria e, embora pudessem contar o tempo segundo sua visão, estavam vivendo num mundo no qual a esmagadora maioria diferia dessa prática. Os judeus, que residem em todos os cantos do mundo, não poderiam ignorar a maneira de o mundo contar o tempo, a base da vida diária de um ser humano. Embora o Judaísmo não seja “deste” mundo – no sentido em que se esforça para transcender este mundo – está bastante “neste” mundo, e portanto, a comunidade judaica precisava acomodar seu calendário secular ao uso global. Como resultado, foi preciso viver sua vida secular de acordo com “as nações” e a dividir a história global segundo as datas do calendário gregoriano. Porém não podia acomodar-se aos termos da divisão histórica baseada no nascimento de Cristo – AC e DC – e em vez disso referiu-se a estes como AEC, antes da era comum, e EC, a era comum.

Em termos judaicos, então, estamos vivendo em 2013 EC, o Templo foi destruído em 70 EC, os Macabeus se rebelaram em 165 AEC.

O calendário religioso judaico, no entanto, não reconhece este artefato secular, conserva seu formato universal, e continua a contar os anos numa escala universal – a partir do início da Criação. Os judeus celebram o Ano Novo religioso, Rosh Hashaná, no dia que a Torá considera o dia da Criação, segundo seu cômputo literal, o primeiro dia do mês hebraico de Tishrei, que geralmente cai no final de setembro.

Os Meses

Os judeus contam os meses pela lua; a civilizacão ocidental padroniza seu calendário pelo sol. Isso apresenta um dilema. A lua viaja mais lentamente que o sol – por cerca de 48 minutos ao dia. No início do mês lunar, a lua se põe a oeste após o pôr-do-sol, e a cada dia 40 a 45 minutos mais tarde. Continua a defasar cada vez mais atrás do sol (cada mês lunar tem 29 ½ dias) até que, ao final de 12 meses, o ano da lua é 11 dias mais curto que o ano do sol, e a cada três anos perde um mês inteiro de tempo.

Isso introduz um problema especial para o calendário religioso – Pêssach precisa ser celebrado no equinócio da primavera – a primavera e a colheita são seus marcos naturais, a ressuscitação da natureza coincidindo com a redenção do povo. Porém, se o calendário lunar perde um mês a cada três anos, Pêssach se moveria para a frente a cada ano, e cairia sucessivamente em todas as estações do ano. É exatamente isto que ocorre com a festa muçulmana do Ramadan.

Os mestres do Talmud fizeram o ajuste acrescentando sete meses bissextos (chamados “Segundo Adar”) no decorrer de cada ciclo de 19 anos, e assim engenhosamente criaram um calendário perpétuo que manteria os feriados na estação aproximada para a qual foram originalmente concebidos.

O primeiro dia do mês lunar, chamado Rosh Chôdesh, era originalmente proclamado pela Suprema Corte em Jerusalém depois que a lua nova era visualmente avistada. Após a destruição de Jerusalém, Rosh Chôdesh era calculado pelo calendário astronômico e determinava em quais dias o feriado cairia.

A Torá designa determinados dias do mês como o início das Festas. Como as pessoas não podem lidar com meses de 29 ½ dias, alguns meses têm 29 e outros têm 30 dias. Os meses de 30 dias têm dois dias de Rosh Chôdesh, os de 29 dias têm apenas um.

Numa reprise da tradição antiga da proclamação da Lua Nova feita pela Corte, no Shabat anterior a Rosh Chôdesh, a chegada do novo mês é agora proclamada durante o serviço na sinagoga, repleta com um anúncio do segundo exato do início de Rosh Chôdesh. Os judeus celebram Rosh Chôdesh basicamente com preces acrescentadas ao serviço.

Uma maravilhosa tradição judaica registra que Rosh Chôdesh, a renovação do ciclo mensal, celebra a feminilidade. Não é apenas um brinde às mulheres e um lembrete da gratidão devida a elas, mas realmente um feriado no qual as mulheres não devem trabalhar.

Este tributo mensal foi iniciado como uma recompensa especial porque no Monte Sinai, ao contrário dos homens, as mulheres se recusaram a contribuir com suas joias para a confecção de um bezerro de ouro – a rematada demonstração feita pelos escravos recém-libertados da sua falta de fé em D’us e no Seu servo, Moshê.

As Semanas

Os judeus contam a semana de Shabat a Shabat. O Shabat é a coroa da semana; a coroa dos Dias Sagrados Judaicos; a coroa do Espírito Judaico; a coroa da imaginação judaica.

O Shabat é uma Rainha. É um prenúncio do próprio Mundo Vindouro. O Dia da Expiação, Yom Kipur, é o único dia mais sagrado que o Shabat semanal e sua extraordinária santidade lhe conferiu o título de “Shabat dos Shabatot”.

“Mais do que os judeus têm guardado o Shabat,” declarou certa vez um grande escritor, “o Shabat tem guardado os judeus.”

Este dia está tão enraizado na condição humana que, não importa quantas sociedades tenham tentado eliminá-lo, não conseguiram. Algumas simplesmente moveram o dia: os cristãos para o domingo, os muçulmanos para a sexta-feira. O Shabat carimba sua marca no indivíduo, na nação, na semana.

Todos os dias da semana levam ao Shabat. Na verdade, os dias não têm nomes, somente números, e estes números (yom rishon, yom sheni,…)todos olham para o número sete, antecipando a chegada do sétimo dia, o Shabat, Shabat.

Os dias de domingo a sexta-feira são considerados, psicológica e fisicamente, como degraus levando ao Shabat, o “palácio no tempo”. Roupas novas são usadas no Shabat; pratos especiais são preparados; convidados importantes são chamados a compartilhar a refeição; discussões significativas são adiadas para depois do Shabat.

A sexta-feira, devido à proximidade com o Shabat, praticamente perde a própria identidade; é simplesmente Erev Shabat, o limiar do Shabat, quando até os mais importantes eruditos auxiliam na cozinha.

Seguindo a analogia dos dias da semana como degraus levando ao dia sagrado, no encerramento do Shabat, o judeu vivencia uma rápida queda na empolgação – o Shabat vai embora, e a vida no nível mais baixo do primeiro dia da semana tem de começar novamente a escalada.

Os Dias

O dia judaico não começa e termina à meia-noite como no calendário secular. A meia-noite não é um evento astronômico reconhecível. Na era antes do relógio moderno, uma hora específica da noite não podia ser sabida com precisão, ao passo que uma hora do dia era facilmente determinada olhando-se a localização do sol. Assim, o dia começava por padrões precisos, simples e universalmente reconhecidos. Isso significava que o dia tinha de ser considerado ou a partir do início da noite ou no início do dia.

No tempo judaico, o dia começa com o início da noite (o surgimento das estrelas) seguido pela manhã (que tecnicamente começa com o aparecimento da Estrela do Norte). Segundo alguns mestres judeus, a noite e a manhã começam com o pôr-do-sol e o nascimento do sol, respectivamente. Pois é como a Torá o descreve: “E houve noite e houve manhã, o primeiro dia.”

Por este motivo, o Shabat começa na sexta-feira à noite e termina com o surgimento das estrelas no sábado à noite. O mesmo se aplica aos feriados importantes como Pêssach, Sucot, Shavuot, Rosh Hashaná e Yom Kipur, o dia de jejum de Tisha B’Av, além de Chanuca e Purim. Iniciar estes dias com as noites é, de certa forma, uma metáfora da própria vida. A vida começa na escuridão do útero, depois se lança para o brilho da luz e por fim se acomoda na escuridão do túmulo, que, por sua vez, é seguida por uma nova alvorada no Mundo Vindouro.

A vida consiste em luz e trevas: “E houve noite e houve manhã.”
O que conta é aquilo que fazemos com o tempo.

Por Maurice Lamm.

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