Mário Moreno/ março 21, 2023/ Artigos

O Gado Oferecido

Por que, se uma pessoa pecou e desejou fazer expiação, ou se estava apenas de bom humor e desejou oferecer algo a D’us, ela sacrifica um animal inocente? Por que ele não se sacrifica, por exemplo?

Resposta dos mestres chassídicos: ele faz.

A Torah, eles explicam, faz exatamente isso no verso que introduz as leis do korbanot:

Um homem que trouxer de você uma oferta a D’us, do gado, do boi e das ovelhas, você deve trazer sua oferta…”

Como aponta o rabino Schneur Zalman de Liadi, o versículo não diz: “um homem de vocês que trará uma oferta para perto de você”, mas “um homem que trará para perto de você uma oferta” – a oferta trazida é “de você.” O animal sacrificado é a projeção, na esfera extra-humana, de um processo que ocorre na esfera intra-humana.

O homem, diz o Talmud, é um mundo em miniatura. O que significa que o mundo é um homem em macro. Nosso mundo contém oceanos e continentes, florestas e desertos, homens e animais; o mesmo acontece com o homem. A psique humana inclui um “mar” subconsciente e uma persona “terrestre”; tem florestas exuberantes e desertos estéreis; e tem uma “alma humana” e uma “alma animal”.

A alma humana – também chamada de “alma divina” – incorpora tudo o que é transcendente e ascendente no homem. Ele gravita em torno de sua fonte em D’us, impulsionado por um amor que tudo consome por D’us e o desejo de se perder em Sua essência onipenetrante. Seus modos de expressão são o pensamento, a fala e a ação da Torah – os meios pelos quais o homem alcança proximidade e apego ao seu Criador.

A “alma animal” é o eu que o homem compartilha com todas as criaturas vivas: um eu dirigido e preenchido por suas necessidades e desejos físicos. Seus veículos de expressão são os empreendimentos da vida material.

“Um homem que trouxer de ti uma oferta a D’us, do gado, de boi e das ovelhas, tu trarás a tua oferta.” Quando uma pessoa traz um animal de seu pasto como um presente para D’us, o gesto é desprovido de significado, a menos que ela também ofereça o animal dentro de si.

O Boi e o Arado

O que fazer com este animal?

O boi dentro do homem não foi colocado lá apenas para ser suprimida ou desenraizada. “Muito grão se produz com a força do boi”, observou o mais sábio dos homens (Pv 14:4), e os mestres chassídicos dizem que isso é uma referência ao animal dentro de nossos corações. Um boi enlouquecido pisará e destruirá; mas quando dominado por uma visão humana responsável e atrelado ao seu arado, o vigor do boi se traduz em “muito grão” – uma colheita muito mais rica do que a energia humana sozinha poderia produzir.

O mesmo é verdade para o boi no homem. Nada – nem mesmo os anseios mais agudos da alma Divina – pode igualar a intensidade e o vigor com que a alma animal persegue seus desejos. Deixada por conta própria, a alma animal tende a um comportamento corrupto e destrutivo; mas a orientação e o treinamento adequados podem eliminar as expressões negativas desses impulsos potentes e explorá-los para fins bons e divinos.

O primeiro tipo de korban descrito em nossa Parashá é olah – a oferta “ascendente”, comumente chamada de “oferta queimada”. O olah é único por ser uma oferenda absoluta: depois de ser abatido no pátio do Templo e seu sangue ser derramado sobre o altar, ele é levantado sobre o altar e é queimado, em sua totalidade, como “um prazer ardente para D-us.”

A queima de algo é a contraparte física do processo de sublimação descrito acima. Quando uma substância é queimada, sua forma material externa é eliminada, liberando a energia presa dentro dela. Este é o significado interno do korban: a energia animal dentro do homem é despojada de suas formas materiais e oferecida sobre o altar de serviço a D’us.

As Oferendas Comidas

Depois de detalhar os vários tipos de korban olah, a Torah passa a discutir as outras duas categorias principais de oferendas – o korban chattat (“oferta pelo pecado”) e o korban shelamim (“oferta de paz”).

Como o da olah, o sangue dessas oferendas era derramado sobre o altar. Mas, ao contrário da oferta totalmente queimada, apenas certas partes do chattat e shelamim “ascendiam” pelo fogo. A Torah designa certos veios de gordura (chamados de chalavim) que devem ser removidos e queimados; mas a carne do korban era comida sob condições especiais de santidade. (A carne do chattat era comida pelos sacerdotes, e a dos shelamim pela pessoa que trazia a oferta, com certas porções dadas aos sacerdotes.)

Há porções de nossas vidas materiais que, como o holocausto, são totalmente convertidas em santidade: o dinheiro dado à caridade, o couro transformado em tefilin, a energia gasta no estudo da Torah, na oração e no cumprimento de uma mitsvá. Há também o dinheiro que gastamos para alimentar nossas famílias, o couro que transformamos em sapatos, a energia que gastamos nos negócios cotidianos da vida física. Mas estes também podem servir como um korban para D’us, quando são “comidos em santidade” – quando o dinheiro é ganho honestamente, a comida é kosher e nossas atividades cotidianas são conduzidas de maneira atenciosa com nossos semelhantes e fiel às leis divinas da vida.

O “sangue” da alma animal – seu fervor e paixão pelas coisas materiais – deve ser derramado sobre o altar; sua “gordura” — sua excessiva indulgência e busca de prazer — deve ser queimada. Mas a essência do eu animal – sua “carne” – pode ser santificada mesmo quando não é totalmente convertida em um ato sagrado. Desde que sejam “comidos em santidade”, nossos esforços materiais podem ser um meio de “aproximar” (o significado da palavra korban) o homem de D’us.

Tradução: Mário Moreno.